Porta da rua


Nasceu em Pernambuco, mas quem quer saber? O negócio deu certo, a mulher fala pelos quadris e chama ele de Biu, que importa a certidão, minha gente? Seu João vai falando e entornando a boa de sexta-feira, aos pouquinhos; a lentidão da bebida que não está nas palavras, miúdas e velozes (por isso das dez coisas que diz, meia-dúzia é só pra não parar a língua e então não travar as idéias). 
O Ismael é que bota esses assuntos na roda para aporrinhar a cabeça da gente. Onde já se viu? O Cearense nem tá aqui e o outro falando do homem, onde tomou vida. Devia o Ismael ir lá pro Estácio cuidar dos seus e deixar o nome dos outros quieto. Pernambucano de nascença, Cearense de apelido e encerra essa história. 
Seu João toma mais um gosto, acerta as contas e se despede de seu pessoal. 
Entre a mercearia e a casa vai-se o velho caminho e é isso que cativa o comerciante. Não por ser velho, mas por ter sempre estado ali mesmo antes dele comprar o terreno em São Cristóvão, fazer moradia e firmar o balcão. Vai pensando que o puxadinho dos meninos vai ficar pronto; vêm netos, noras e esse traçado de rua vai continuar assim, pé-de-moleque cimentado. Tem certeza e duvideodó que não. Besta é quem sai do caminho, o Ismael é que não entende e dana de querer complicar as coisas. Essa calçada, por exemplo, vai pra mais de cem anos e tem por aí quem não chega aos cinqüenta, que é que esse povo se mete de inventar? As pedras sabem por onde vão e se não souberem, quem? Chamar o Biu de pernambucano, avalie! 
Passado o sinal, a rua vira à esquerda e leva junto Seu João. Tem um sem número de lojas de autopeças que pela esquerda também um dia passaram - e por que não ficar? Ora, pois, quem passa é que se rende ao passeio que a ruela nem se importa quais joões. Vê, ele mesmo, Joãozinho da Silva, fazendo as voltas Daquele João, tal de sexto e tudo. Se bobear, o Ismael, intrometido toda a vida, ia chacoalhar os dentes só pra dizer que a família desse joãozão veio tomando carreira. Vai dizer: esbaforida Atlântico afora. E isso importa, hômi? Vai ver que o Biu veio também fugido, de repente de fome, e tá aí nosso Cearense, Rua Dom Meinrano, 25, São Cristóvão. A reza que fica vale mais que o latim do sermão, então se foi tomando couro que essa gente chegou aqui, é outra coisa, que é coisa nenhuma; São Cristóvão deu bênção e foi cada um pra suas quintas. 
Vai pensado, tonteando o bairro com os pés. Quem disser que ele tomou a rua dos canos e silenciosos porque ela se parece com a da farmácia e que o corpo escuro e liso da madrugada faz das certezas diurnas esquinas abandonadas não sabe que o bairro é mapa tatuado, sentença proferida, remendo, ranço. Murrinha mesmo. Seu João só alongou o passo pela casa da Marquesa porque sentiu cheiro de árvore e vento, talvez o cheiro parecido com o que, noite dessas, levou Pedro pras mesmas bandas. Esse era homem que conhecia os bons caminhos da praça, pensa Seu João. Conversa, essa história de Dom. Chama de Pedrinho. De camiseta e bermudas, Seu João pensa no que diria a ele num domingo enquanto lavasse o carro: Galego, escuta teu pai, não arruma idéia, moça de zona não vale a pena... Mas é verdade, rapaz, se a coisa é de amor esqueça a Tereza e vai-te embora com a outra que foi o que eu fiz com tua mãe, depois de dois dias de condução até o Rio. Viemos do Pará pro Jardim Zoológico, como ela costuma dizer. Ai, Dinho – porque Pedrinho já tem dois na vizinhança- procure estudar, ser homem direito e entender de venda pra você me ajudar aqui no balcão. Agradeça sempre a Deus mas à noite ponha o diabo no corpo quando levar tua moça pro bate-coxa da Feira. Corte essa barba de credo-e-cruz e não dê papo pro Ismael. 
Pronto, está em casa. Está em casa como antes já estava. Não foi necessário pegar o chaveiro do Vasco de campeão de oitenta-e-tal, subir as escadas do sobrado e sentir o perfume do café com a madeira das portas para estar assim confortável. Seu João, ainda enquanto pelas ruas, via na calçada seu corredor. De repente as praças, sala de estar e no botequim, a mesa forrada da copa. Talvez seja por isso que ele às vezes esqueça a porta da casa destrancada e a mulher resmungue, João tá bêbo e caduco, muito do esquecido. Porta da casa. Da rua, repete ele sentado no sofá com a janela aberta pro seu santo se achegar quando quiser.

Texto publicado no livro Contos do Rio, edição de 2006

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