Tinta derramada

Tinta derrmanda
Manuela Oiticica
___________________________________________________________

Quando foi pelas onze, a garganta escorria. Por ela, partidos e pagodes começados às oito de um tempo que se perdeu. Pedro suava do calendário e dos olhares exaustos que o encaravam agradecidos. Cúmplices, a bem dizer. O copo, uma banda cheia, a outra vazia como manda a saideira e a madrugada estava pronta. De longe, rufavam os tambores do relógio, uma e meia, quinze pras duas, até amanhã. Um fio de cabelo molhado corrigia as rachaduras da testa como quem preenche um hiato. Podiam ir embora.

Do galo, o sol sai preguiçoso, os raios indo e esquecendo de ir. Alcançam as janelas, tocam os rostos de amarelo e, porque ganham confiança, colam nas paredes dos quartos. Depois é serpentear pelo rádio-relógio e ensinar a ele o canto do quintal, enquanto alguns têm a noite ainda entre os braços. Pedro compreende e põe a caneta na lapela.

Bom dia Seu Tinoco, Dona Zeca, Marquinho. Dia bom a gente é que faz e vem o cheiro de café e namora o nariz de Pedro. É um pingado e um na chapa, mas guarda os trocados, Pedro, outra hora teu cavaco larga as notas no balcão. Bom dia Dona Glória, Nestor, Ediane.

Pára o ônibus. Como é que é, tudo certo. A passagem fica pelo passe redondo da pelada de domingo. Que bola, hein, mais açucarada que beijo na boca de morena, e Pedro olha pra canhota carimbada. O papo vai rabiscando a Brasil e ganha gosto de hortelã no saco plástico desempregado. Oito em ponto e desliza o pisante na pressa da Avenida Chile.

As horas escangalham na piada que a rodada do fim de semana deu repertório pros rubro-negros. Debaixo da camisa ajeitada, há quem guarde um sorriso pro patrão, vascaíno da terrinha e vai Pedro servir o cafezinho - América, sabe como é. Trabalho também tem, fica ali na letra "t" da enciclopédia cotidiana, funcionária pública. Encostado nele, um pouco antes tem o tempo - camarada invocado. Mas que nada, um ponteiro é no quadrante e o outro no redundante da loirinha que só de ir nem precisa de voltar. Mas volta, confere e rebola com os sentidos horários. Pedro bota o ponto, bate ponto e sai.

No Largo da Carioca, tem pouca roda pro tanto de curioso. E dança o capoeira com a roda de fogo e roda-se o chapéu da piada que não termina, nunca termina, que ela é feita de nunca terminar. Pra saber tem que olhar e olhar como se não fossem cinco e meia, a casa esperasse na esquina e o cansaço parasse embrulhado com açúcar e amendoim. Mas outra vez quem pára é o ônibus e se esquece parado pois Seu Guarda agita os braços, brada e silva aliviado quando consegue o chamego total dos veículos. Dentro de um deles, a placa diz: trinta e cinco em pé, quarenta sentados. Os amassados, imprensados, encaracolados Pedro acha que esqueceram de contar e é melhor dormir.

Dormir. Não é tão simples assim. Dormir é encaixar a perna no ferro cinza - a direita sobre a esquerda sobre a direita - e entender a janela como halteres pra bochecha. Desculpa, foi a curva. Abre o olho e nada, nada de chegar, nada que chega mais rápido. Na falta de espaço pruma braçada Pedro brinca de encostar as mãos no que está no fundo do olho, tateia e segura. Versos.

Chega em casa, o bife de panela esperando, a chuveirada, a camisa de botão. Pedro se enfia na calça e acorda o cavaco do sofá. É preciso cordas para atar os versos e a palheta escondida na esquina do rodapé com o tapete que a mãe vai procurar no intervalo da das sete. No bolso também tem intervalo, pois o mês, cavalheiro, espera a grana, dama enxuta e apressada, retirar-se para então se despedir. E vêm as rugas da calçada.

Ô Pedrinho, não esquece daquela que ganhou o carnaval, manha a neguinha por seus lábios infinitos. Pedro não esquece, que dirá Pedrinho e vai afinando a palavra, tocando-a com a língua e deixando a saliva cheia de adjetivos. Na aquarela do imaginário supõe que a sombra é o que mais o enche de cor, mas segue, e seguir é um de seus matizes.

Com o perfume gelado da cerveja, o bar se aproxima de Pedro e vai inflando o peito pra anunciar o abraço. Mas nenhum verso vira rima sozinho: Waldir, Neco Sete Cordas, Mestre Jambo, Maria, Dona Niná, Toda a Gente. E Pedro ri colorido que é mesmo o que ele é, de uma cor que já não se sabe e essa gente tem por ele um carinho que não enjoa. É que Pedro brinca de luz que ninguém sabe quando acende, quando apaga; é que joga confete no chão que não tem piso e sapateia no assoalho e engraxa o couro no terreiro. Tem no cabelo um louro cacheado e chamam Pedro de Arcanjo, mas também chamam de Russinho quando o inverno deixa um vermelho estalado no seu rosto. E lá longe, pra lá da sua pele, faz um calor daqueles de Rio de Janeiro e derrete toda tinta. É Curumim, Preto Véio e Portuga. Me dá um ré, gente boa. Pedro sabe é ser mulato.


Texto vencedor do concurso de contos Nossa Gente, Nossas Letras 2005, promovido pela ABL. A edição propunha uma releitura do livro Tenda dos Milagres, de Jorge Amado.

Contato

manuelatrindade2@gmail.com