Chorão de subúrbio

Ex—gari, onze filhos e um título quase extinto: chorão do subúrbio do Rio

Era um garoto que, como poucos, amava o Pixinguinha e o Jacob do Bandolim. E o Siqueira, o Valter Silva, o Caçula, o Seu Clóvis. Se os dois primeiros deveriam ser da intimidade de todos os nascidos depois de 1920, os demais tocam na ala nobre dos desconhecidos chorões. 

Música instrumental tipicamente carioca nascida no início do século XX, o choro começou a ganhar forma nos pianos de Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga, na flauta de Joaquim Callado e na banda de Anacleto de Medeiros. Pixinguinha arrumou a casa e consolidou em gênero o que ainda era forma. Se Waldir Azevedo fez a música mais conhecida, o caprichoso Jacob deu o polimento final. 

Em 2013, um rapaz de 26 anos de Maria da Graça em geral respeita os mais velhos e tem uma família tradicional. Um pai eventualmente militar e uma mãe dedicada à casa. Tem rolos, namoros, peguetes. Curte a night e os tchetchereretchetchês.

Em 2013, um rapaz de 26 anos, em geral, não conhece Pixinguinha ou Jacob. E se alguém resolver por conta própria meter a mão na massa pra tirar do anonimato um ex—gari de setenta e cinco anos anos, onze filhos, cavaquinista e compositor de choro, um rapaz de 26 anos, mesmo que respeite os mais velhos, em geral, não vai comprar esse disco. 

Músico criado entre os chorões genuinamente desconhecidos, Wellington Monteiro juntou o dinheiro que tinha — e o que se desdobrou para arrumar — para produzir com o amigo Pedro Cantalice o CD 'Entre nós', com músicas só do Siqueira. Aquele lá do primeiro parágrafo. Por imenso respeito ao choro, por reconhecimento à qualidade do compositor, por trabalho de final de curso. Por entender que com 26 anos, depois de aprender as frases de sete cordas com os sucessores de Dino e a matreirice do cavaco que Jonas difundiu, estava na hora de colocar a disposição que os contemporâneos usam na pista de dança a serviço do gênero tão rico quanto ignorado. 

Choro é igual punheta, dizem, só é bom pra quem toca. Só se for o mal tocado, meu caro. Mas tudo isso só fará sentido quando entendermos as peripécias de um pandeiro alado, e que as baixarias de um sete cordas esnavalham qualquer ouvido. 
Siqueira não tem nada com isso. Empunha o cavaco pensando em choro e pegada de pagode. Tem mais de 500 músicas, 499 com uma modernidade convicta. No semblante, o anonimato do chorão do subúrbio. Camisa polo, boné na cabeça, negro e com mãos de vassoura, empurrando com precisão as notas de um instrumento tão negligenciado como o choro que se toca.
Sim, o choro do Rio pegou fôlego com o projeto da Escola Portátil de Música. Mas não se trata só disso. Os herdeiros de onde o gênero cismou de ser forte permanecem onde sempre estiveram: de costas para o Cristo Redentor. Pelo menos até que hajam mais Pedros e Wellingtons dispostos a manejar os holofotes e espantar as sombras.

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