Exilados, Dircinha, exilados

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- Minha senhora, ordens são ordens, é bom reclamar com quem mandou.

Dona Gertrudes e Seu Olegário embasbacavam-se ao ver o cortiço em que moravam estirado no chão da futura Avenida Central. Depois que o café entrou em crise, tinham largado Minas e ido pro Rio: Seu Olegário como arrumador de cargas no porto, Dona Gertrudes pondo-se a lavar pra fora.

- E agora tenho que sair do miolo da Cidade pra sei-lá-onde-de Inhaúma, meu filho? E lá tem lençol de madame esperando eu esfregar meu sabão?

- Isso aqui é um murundu de gente, senhora. Vem aí o progresso: maiúsculo e de largos boulevares. E que estejam extirpadas todas as doenças! Está escrito aqui. Progresso - ordens são ordens.

- Ninguém quer pegar bexiga não, mas qual! Parece até que o bicho que dá doença somos nós!, foi o que disse Olegário, isso lá nas franjas de 1900.

E saíram saídos.

- Pra Inhaúma não!

2

Na vizinhança não se falava em outra coisa – o morro do Castelo impedia a circulação do vento que vinha da Baía de Guanabara. Dircinha era de Iansã e, na confusão de criança, foi correndo cobrar da mãe que eles teriam que deixar a casa por maldição da orixá.

Eparrei, Dona Gertrudes – passarinheira todavida - se assustou: que a senhora dos ventos não ia fazer isso com a gente dali, a maior parte tendo sido arrastada da África em cargueiro de navio português - há anos tomando corrida dos seus bangalôs improvisados. Não, não, Dircinha, isso é coisa de homem-dotô, desses que andam por aí embecados, aiminhassantabárbara.

- Ô... Legário, escuta. Escuta o que a menina tá dizendo. De novo, Legário, de novo a gente tem que largar a casa da gente. Agora é conversa de vento.

- Quando não é doença, é vento! Só que aqui já morou gente rica, os estácios todos que fundaram a cidade. Vai dizer que naquela época o vento ventava diferente?, perguntou Seu Olegário ranzinzando o final da frase, no jeito agudo dele de desdizer as coisas.

[Capoeira: diz-que vai ter uma exposição] [Feirante: diz-que vão embelezar a cidade] [Garçonete: diz-que as pedras são prajeitar os bairros finos] [Ajudante de pedreiro: diz-que vai ser no canhão] [Costureira: diz-que vai ser na marreta] [Moça da pharmácia: vão precisar de todas as marretas que existem em 1922]

- Minha senhora, ordens são ordens, é bom reclamar com quem mandou. E a ordem é derrubar tudo. Barraco, gente, morro. E derrubar com jato d'água.

3

Praia do Pinto, Dircinha abriu um terreiro depois da morte dos pais, que não aguentaram a perambulação de morar de favor por quase dez anos. Uma pena eles não terem visto isso de morar perto da Lagoa e do mar, pensava ela. Um alívio, isso sim, eles não terem visto isso de morar num bairro ajeitado com os escombros do nosso morro do Castelo, pensava também.

- Meu marido foi da construção civil. Ajudou a subir o Jóquei, os prédios de Ipanema, cavucou pra pôr de pé o sistema de esgoto e depois sumiu por aí. O safado. Eu? passadeira no Leblon. Na volta cuido do meu terreiro. Tenho mania de gostar da lua, como a minha mãe; desconfio de vento ventado, como meu pai - Ô, menino, pega água pro moço do Jornal do Brasil! E pra mim também, que contar trinta e sete anos de Praia do Pinto só deitando muita falação.

Jairo levou a garrafa d'água e se mandou a dedilhar violão. Deixou Dircinha explicando que é bom morar perto do trabalho, que os vizinhos se conhecem pelos apelidos, que a associação de moradores está se organizando, que não gosta de falar da perda da filha em morte-de-parto, que quer melhorias para a favela, que seu neto pode crescer sossegado, que cheiro de mar faz bem pra vista. Que a mãe tinha de ver a luz banhando a lagoa.

Quando voltou, Jairo se lembra de ter visto a vó apontando uma página de jornal e falando com a voz serrilhada . “Moço, eu não sou infeliz, eu não vivo como porco como disse o governador no seu jornal. Eu não sou ignorante. E eu não vou pra Cordovil nenhum”. No canto da página, o menino viu as letras amassadas: “O governador Negrão de Lima informou que a área da Favela da Praia do Pinto será loteada e seus terrenos vendidos em hasta pública. As futuras construções do local deverão obedecer ao projeto de urbanização da área”.

Jairo não sabia o que era loteada, nem hasta pública, nem projeto de urbanização da área. Nem aquilo de Cordovil. Só sabia que não queria fazer como muitos dos seus amigos, colocando a mudança em caminhão de lixo e indo embora do lugar em que vivia há 15 anos.

JORNAL DO BRASILRio de Janeiro – Domingo, 11, e segunda-feira, 12 de maio de 1969. Ano LXXIX – N.º 29
Fogo deixa 5 mil ao desabrigo
Cinco mil pessoas  desabrigadas, 800 barracos destruídos e 32 feridos foi o saldo do incêndio na Favela da Praia do Pinto, iniciado às 4 horas da madrugada de ontem e debelado às 10. (…) As causas do incêndio eram desconhecidas até ontem à noite porque a perícia ainda não fôra solicitada.(…)
Iluminada por pequenas fogueiras, em volta das quais as famílias se reuniam, e dominada pelos comentários sôbre o possível número de mortos, a Favela da Praia do Pinto, na madrugada de hoje ainda continuava habitada por milhares de pessoas: a maioria das crianças dormia no chão e os adultos cochilavam sentados. Os objetos salvados do incêndio continuavam empilhados na rua. Mas, apesar de tudo, alguns ainda tocavam tamborim e violão como se nada tivesse acontecido.
Esse incêndio ainda não se apagou, sabe? Esse incêndio tá comigo desde lá, foi um incêndio covarde, eles tacaram fogo… E esse incêndio, essa chama, ainda não se apagou, eu ainda continuo exilado. Manoel Gomes de Oliveira, sambista e comerciante removido da Praia do Pinto,  em depoimento ao historiador Mario Sergio Brum, 27/05/2009

É difícil, senão extremamente impossível, recuperar homens, mulheres e crianças em ambiente como o das favelas. Pelo que optamos pelo árduo, mas frutífero, trabalho de erradicação. Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana, 1971 : 31

Vrum, vrum, biii, toc-toc-tá-tá-tá, BAIANO FRETES, vrum, biiii, biiii, é melhor pegar a cama por baixo, vzzzzzz, vzzzzz, ainda não, serra mais um pouco, é tudo barro, mato, vrum, vrum, cabeleira do Zezé será que ele é, aaaatchim, exilados, Dircinha, exilados. Cidade Alta, Cordovil, julho de 1969

[22/8 22:25] DéiA: partiu camarote no Barra Music?
[22/8 22:32] DéiA: ????
[22/8 22:35] DéiA: KD VC VACILAAAAO???
[22/8 22:41] Éverton: oi minha princeza tava ajudando meu coroa c o contrato da TV
[22/8 22:41] Éverton: controle
[22/8 22:41] DéiA: bora no Barra Music camarote vipeeeee?
[22/8 22:41] Éverton: :O
[22/8 22:41] Éverton: tu tá maluca??? so jogador de futebol naum
[22/8 22:42] DéiA: mó muquirana tá cheio da grana na prefeitura kkkkkkkk
[22/8 22:42] Éverton: kkkkkk quem dera
[22/8 22:43] Éverton: vo fica no sapato hoje minha princeza amanhã tenho  serviço cedo
[22/8 22:43] DéiA: entaum ... aí tu fica direto vacilao
[22/8 22:43] Éverton: kkkkkk
[22/8 22:44] Éverton: Da naum amanhã o bagulho eh tenso. hoje n dá nem p toma um gelo no pagode do altas hiras
[22/8 22:44] Éverton: horas
[22/8 22:46] DéiA: :(
[22/8 22:47] Éverton: tu sabe que qdo akbar as obras da olimpíada vai dar p comeca a pagar akle terreno lá em s goncalo p gnt morar como... juntinho [22/8 22:47] Éverton: naum tem p ngm <3 <3
[22/8 22:47] DéiA: longe p carai...
[22/8 22:48] Éverton: eh onde da pra compra neh princeza
[22/8 22:48] Éverton: tu quer mora onde na praia do leblon, na lagoa kkkkkkk nasce de novo princeza mas convence deus antes que tu é mesmo princeza kkkkkkk
[22/8 22:51] DéiA: kkkkk

Mensagem visualizada às 5:31

Jairo foi acordar o filho com medo de que ele perdesse a hora com esse negócio de passar a noite na internet, mas Éverton já estava no banho. Tinha demorado pra achar o emprego na prefeitura e não queria dar mole, ter que voltar a dirigir van, pagar pedágio pra milícia ou molhar a mão duzomi pra garantir o ponto no mototaxi. Jairo dobrava seu trabalho no frete pra ajudar a pagar a faculdade de administração do filho e tinha orgulho de Éverton vir a ser o primeiro da família a fazer faculdade e, quando terminasse, o primeiro da família a se mudar sem ser empurrado. Pensava sempre no orgulho que a vó Dircinha teria do bisneto e imagina que ela iria entender que, em vez de terreiro, ele frequentasse mais a mãe a Assembleia de Deus Ministério de Cidade Alta – juntos somos mais fortes. Acima de tudo, um bom menino. Seu menino. E foi preparar o café.

4

Louça-na-pia-bancadejornal-e-o-Vasco-hein-são-três-tomates-duas-cebolas-sua-mãe-melhorou-mayara? Quando voltou para preparar o almoço, a molecada bateu na porta gritando. O Éverton tava na tevê.

- E bancando o piloto, tio!

“Voltamos a falar do conflito entre moradores e a Guarda Municipal que ocorreu nesta manhã na Vila Autódromo, em Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio. Sete pessoas ficaram feridas”.

- A-lá, a-lá, tio. Vai mostrar de novo.

“A Seop afirmou que os funcionários da Prefeitura foram atacados a pedradas pelos moradores e que a Guarda Municipal precisou intervir para dispersar o tumulto”.

- Ó ele ali! Mó tratorzão!
- Aí, Junim, se ele pilotar trator igual fazia na van, vai ser como?, fala tu: mó pressão, neguinho.

“A desapropriação da área começou perto das oito horas da manhã, mas os funcionários da Prefeitura relatam que, desde as sete horas, um grupo de moradores formava um cordão em volta das casas que seriam removidas. Ao verem os tratores se aproximando, os moradores teriam atacado com pedras os funcionários. A área que está sendo desocupada pela Prefeitura vai servir para abrigar o Parque Olímpico durante as Olimpíadas de 2016, que  serão realizadas no Rio de Janeiro”.

A reportagem terminou com a sala cheia de vizinhos e especulações. Será que por ter dirigido o trator o contrato dele na Prefeitura ia ser renovado? Será que ele deu alguma entrevista? Alguém ligou pra DéiA? Quando a mãe dele chegar vai ficar apavorada! Será que o prefeito foi falar com ele? Ele não ficou com medo de levar uma pedrada daqueles vândalos?

Jairo na poltrona, olhando mudo pra guia que tinha sido da sua avó e que ficava logo acima da televisão.

Alguém notou que o refogado estava queimando e desligou o fogo.

Veio chegando a Mayara, a que trabalhava na venda. Filha do Manoel e da Doca, que tinham vindo da Praia do Pinto no mesmo caminhão que o Jairo depois do incêndio. Faz 46 anos, mas ele ainda se lembra da Doca bem menina chorando e falando que era tudo barro, mato – eles tocando a cabeleira do Zezé pra distrair, o Manoel espirrando adoidado.

Os olhos de Jairo continuavam pendurados na guia. Que foi da Vó Dircinha. Que quem deu foi Vó Gertrudes. Que quem fez foi Vô Legário. Lá nas franjas de 1900. Em algum canto de cortiço já derrubado. Centro. Castelo. Lagoa. Cordovil. A essa hora Éverton já teria dito aos moradores: minha senhora, ordens são ordens.
moradores: minha senhora, ordens são ordens.

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manuelatrindade2@gmail.com