Não teve Copa

Artigo-diário publicado na revista Piauí (agosto/2014) por Ciro Oiticica

O estudante universitário Ciro Oiticica também é apaixonado por futebol. Ao contrário, porém, de quase todos os seus compatriotas, decidiu sair às ruas para protestar contra a organização da Copa do Mundo enquanto o Brasil jogava e o país torcia. Participou de várias manifestações, enfrentou a polícia e correu dela, temeu ser preso em sua casa e registrou o momento em que uma moradora dos arredores do Maracanã gritou aos agentes do Estado: “Mete porrada neles”. Em seu diário, ele descreve reuniões entre os manifestantes e aponta divergências e rivalidades que lhe parecem estéreis. 

“Lamento a intolerância entre os grupos que se propõem a ser transformadores, a falta de coragem daqueles com mais maturidade política e a pouca criatividade dos que têm coragem”, diz a certa altura.

 Aos 25 anos, formado em comunicação social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e aluno de relações internacionais na Pontifícia Universidade Católica, Ciro integra o grupo Rio na Rua, de mídia alternativa. Nunca havia militado até o ano passado. Foram as revoltas de junho de 2013 que o levaram às ruas desde então. Em agosto, participou da ocupação da Câmara Municipal do Rio e foi preso dois meses depois.

11 DE JUNHO, QUARTA-FEIRA_Entre uma prova e outra, paro para espiar o WhatsApp. Atuo no Rio na Rua, coletivo de mídia alternativa, que acaba de informar que quatro pessoas foram presas no Rio de Janeiro hoje de manhã. Ainda que as prisões preventivas para a Copa fossem esperadas, sempre achei que não ocorreriam: seria ruim para os manifestantes, mas pior para o Estado. Temo que a polícia passe em casa, sobretudo por minha família – meu irmão mais novo e minha madrasta. O que mais me angustia na ideia de ser preso é o constrangimento que causaria aos meus. Tranquilizo-me ao lembrar que a esta hora eles não estão em casa.

Respiro fundo e vou para a outra prova. O tema é o estado de exceção. E na exceção quem não deve também teme. É a regra em nossa cidade. Faço a prova e desço as escadarias da PUC. Dia lindo, ensolarado e fresco. Daria uma aula de francês em duas horas, mas consigo transferir para sexta-feira.

Passo a tarde tentando entender o que aconteceu. No Rio na Rua, insistimos em só publicar informações seguras, mas os veículos alternativos nos quais me amparo muitas vezes deslizam para o sensacionalismo, como a mídia convencional. As pessoas não haviam sido presas, mas levadas à delegacia para prestar depoimentos. Computadores e celulares foram apreendidos. O alarmismo se justifica: a polícia entrou com truculência nas casas, deixando um rastro de destruição.

À noite, vou me informar dos preparativos para os protestos na abertura da Copa na Casa Nuvem – um coletivo de arte e política que pretende intervir criativamente na cidade e ocupar espaços públicos. O clima é alegre naquele fundo de garagem na Lapa, iluminado em tons de rosa. Uma rápida reunião define a organização do ato, inspirado em alas de escola de samba e no princípio da “ação direta estética”. A essa tática de protesto, um tipo de desbunde politizado, deram o nome de “Carnavandalirização”.

12 DE JUNHO, QUINTA-FEIRA_Brasil e Croácia jogam às cinco, abrindo a Copa. É dia de ato também. São dois: um no Centro, de manhã, e outro em Copacabana, na Fifa Fan Fest, na hora do jogo.

O primeiro, com o bordão “Nossa Copa é na rua”, foi organizado pelo Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas,[1] associado a alguns partidos de esquerda e à galera da Nuvem. A concentração começa às 10 horas na Candelária. Algumas pessoas questionaram essa convocação: no Centro da cidade, num feriado, de manhã e muitas horas antes do jogo, a pressão não seria muito grande. Outros foram mais longe, dizendo que o ato “pelego” teria o objetivo de desmobilizar as pessoas e atenuar o efeito dos protestos. Não costumo alimentar pequenas rixas. Vou aos dois.

Saio de casa com uma camisa verde-amarela e a inscrição “Fuck Fifa”, que concilia a cultura da Seleção com a crítica à organização da Copa. A comissão de frente do ato, que segundo o Rio na Rua reuniu 3 mil pessoas, parece um bloco carnavalesco: gente fantasiada, purpurina rosa e uma viga de isopor, numa alusão àquela que sumiu na demolição do viaduto da Perimetral, no ano passado. Em seguida vem o black bloc, que não deixa de ser também uma “ação direta estética”. Clima de tensão e provocação com a polícia.

A manifestação segue sem problemas até a Lapa. Depois de uns dez minutos, na praça diante dos Arcos, quando as pessoas já estão se dispersando, começa uma confusão. Um manifestante foge de três policiais, um dos quais tropeça numa mureta e cai no chão, ralando o rosto. Em um ano, é a primeira vez que vejo um policial sangrando. O rapaz perseguido é detido e levado para alguma delegacia, que nenhum policial soube ou quis indicar. Outras detenções acontecem. Depois de inalar um pouco do gás de pimenta, almoço com amigos num boteco e seguimos para a segunda manifestação.

Encontramos o protesto puxado pela Frente Independente Popular, a FIP,[2] na altura do Copacabana Palace. Marchamos até o Posto 2, onde está o telão da Fifa Fan Fest. Chegamos quando Marcelo faz o gol contra. Os manifestantes, por volta de 400, vão à loucura, pulando e entoando o grito primitivista do black bloc: “Uh, uh, uh!” Sempre amei futebol, não sabia qual seria minha reação diante dos jogos. Minha presença no ato, e não em casa, diante de um televisor, já me dava uma pista. E convenhamos: nada mais simbólico do que um gol contra para abrir esta Copa. O Brasil entregou bilhões de reais para a construção de elefantes brancos, para isentar a Fifa de outros bilhões em impostos, atrasou a construção dos estádios para superfaturá-los e desprezou as condições de trabalho que levaram oito operários à morte.

“Copa para quem, se nem saúde e educação a gente tem”, cantamos diante da plateia verde-amarela. Torcedores lançam latinhas e garrafas d’água em nossa direção, provocando apenas alguns bate-bocas irônicos sobre os ganhos e prejuízos da Copa. A polícia acompanha à distância, receosa de qualquer confusão que repercuta na imprensa internacional.

A marcha segue para o Posto 6, no outro oposto da praia. Caminhamos sem maiores confusões até a Central de Mídia. Como em todo final de ato, a tensão cresce. A polícia parte para cima de manifestantes que batem e fazem tremer a estrutura metálica da Central de Mídia. Uma pedra lançada em direção aos policiais abre a cabeça de um jornalista independente.

Num restaurante da orla, uma cliente, com a camisa do Brasil, atira um prato numa manifestante com quem batia boca. O pessoal pressiona a polícia para que se posicione. A mulher se refugia dentro do restaurante, um cordão policial protege a entrada. Os manifestantes gritam “cadeia, cadeia”, e chego a ouvir que é o começo do fim da burguesia. Curioso que esse começo dependa da ação da polícia. A mulher finalmente sai e é conduzida à viatura policial. Uma voz de deboche sugere que a polícia a prenda ao poste. A referência é lamentável, mas não deixo de rir.

No ônibus de volta para casa, uma amiga me pergunta sobre minha prisão no ano passado, no dia 15 de outubro, quando policiais cercaram a escadaria da Câmara Municipal, rasgaram as barracas dos manifestantes do Ocupa Câmara Rio[3] e prenderam sem qualquer critério todos os que lá estavam. Ela quer saber se eu me senti humilhado quando rasparam minha cabeça e me fizeram ficar nu para vestir o uniforme da cadeia. Respondo que não. Percebo que até aquele momento não tinha me permitido assumir que tinha me sentido humilhado, sim.

13 DE JUNHO, SEXTA-FEIRA_Acordo às 8 horas, com os vidros do quarto tremendo ao ritmo de Shakira. Tento resistir, mas o estrondo que vem da Fan Fest, na praia de Copacabana, onde uma banda testa o som, é insuportável. Tenho que entregar uma resenha e um artigo para a faculdade. Por causa do barulho, vou escrever na casa da minha mãe, na Gávea.

15 DE JUNHO, DOMINGO_É dia do primeiro jogo no Maracanã: Argentina e Bósnia, às sete da noite. Por volta das seis visto minha camisa retrô do Boca Juniors, da Argentina. No colégio, meus amigos diziam que eu tinha cara de argentino, tomara que isso me ajude hoje. O ato no Maracanã é puxado pela FIP. A concentração está marcada para a praça Saens Peña, na Tijuca, mas, estrategicamente, teria sido mais interessante cada um chegar por conta própria ao estádio. É o que faço. Não vejo nenhum negro que não seja cambista.

Busco algum indício do ato. Em geral, basta seguir o helicóptero que costuma sobrevoar os manifestantes, mas sou guiado pelo gás de pimenta. No final de uma rua de acesso ao estádio há um cordão policial. Atravesso a barreira e encontro moradores lacrimejando e assustados. No meio deles, vejo uma manifestante que me diz que o pessoal conseguiu chegar até ali, mas foi dispersado pela polícia. Encontro outros midiativistas e seguimos em direção à avenida 28 de Setembro, atrás do estádio, para onde sobem carros do Batalhão de Choque. Um homem de uns 40 anos bate palmas pausadamente quando cruza com a gente. Interpreto como um sinal contido de apoio.

Na 28 de Setembro jogaram lixo na rua para atrapalhar os carros de polícia. Um deles se detém e os policiais saltam para retirar os sacos. Uma senhora de idade, num balcão decorado com bandeiras brasileiras, reclama da lentidão dos caras: “Mais rápido! Mete porrada neles.” Quando passamos pelos bares, o pessoal também reclama do protesto e os donos se apressam em fechar as portas.

Temos notícias de que cinco tiros foram disparados naquela região, mais cedo, por um policial fora de serviço. Ainda na 28 de Setembro, deparamo-nos com um grupo de policiais, um deles com um fuzil apontado para um alvo imaginário. Um rapaz que nos acompanha questiona o uso da arma. “Não teve tiro aqui mais cedo?”, pergunta o policial, assustado. “Teve, mas foi de um policial à paisana”, responde o rapaz. “Não tem por que usar isso.” O policial não parece convencido. Um homem de camisa do Brasil abraçado a uma mulher aprova a arma: “Tem que meter bala nesses vagabundos.”

16 DE JUNHO, SEGUNDA-FEIRA_Alugamos o apartamento para dois chilenos que vieram para a Copa. Ficarei na casa da minha mãe por uma semana e tenho que preparar a mudança.

17 DE JUNHO, TERÇA-FEIRA_Há um protesto marcado pelo Movimento Passe Livre no Centro da cidade, às 17 horas, uma hora depois do início de Brasil x México. Quando me preparo para o ato, me informam que ele já tinha se dispersado diante da repressão policial. Um grupo rumou para Copacabana. Decido esperar e então fico sabendo que, na migração do ato da Cinelândia para Copa, um policial quis entrar num ônibus pela porta traseira para acompanhar os manifestantes. Quando a porta foi aberta, outros manifestantes subiram, dando-se início a uma confusão que culminou em detenções. Os policiais puxaram com brusquidão uma menina para detê-la, e um amigo, conhecido pela calma, tentou ajudá-la. Também foi detido, bem como outras dezoito pessoas.

18 DE JUNHO, QUARTA-FEIRA_No início da tarde, pipocam notícias de que haverá um ato-surpresa no Maracanã, durante a partida entre Chile e Espanha. Vou de carro para o Largo do Machado, de onde pretendo seguir de metrô até o Maraca. No caminho, a polícia me para: a placa do meu carro tinha caído. Ganho uma multa e o documento do carro fica retido. O pessoal no Maracanã informa que nada estava acontecendo. Resolvo a questão da placa e volto para casa. Fico sabendo que houve um ato com poucas pessoas depois do jogo.

20 DE JUNHO, SEXTA-FEIRA_Há um ano ocorria a passeata de 1 milhão na Presidente Vargas. Na avenida, uma amiga avisa que não haverá plantão dos advogados no fim de semana; se alguém for preso, até terça-feira contará com pouca assistência jurídica. O ato reúne umas 300 pessoas, infinitamente menos do que em 2013. A polícia cerca os manifestantes de todos os lados. A passeata segue sem grandes confusões até a Lapa. Uma festa junina organizada pela FIP está sendo montada e os manifestantes se dividem. Alguns querem continuar na marcha pela Mem de Sá, que cruza o bairro; outros pretendem ficar na festa. Uma amiga sugere que penduremos uma faixa nos Arcos.

Conflitos na Mem de Sá. Cerca de cinquenta pessoas fecham o cruzamento com a rua do Lavradio, cantando músicas de protesto. Não conheço muitas delas. Cantos são improvisados, identifico o clima mais espontâneo do ano passado: “Ó, polícia, você tá do lado errado. Come verme e Polenguinho estragado.” Não sei em que medida o canto humilha mais os policiais do que denuncia a opressão que sofrem. Pequenas doses de gás de pimenta são lançadas, não sei por que motivo. Talvez seja em resposta às provocações dos manifestantes: “Uh, joga mais!”, “Oh, joga no gringo!”

Lembro-me de um episódio do ano passado, quando perguntei a um policial se a concentração do gás lacrimogêneo que ele usava era a permitida. Eu sabia que o limite era 10%. À sua resposta afirmativa, perguntei por que aquele gás era muito mais forte do que os outros. Ele riu, cúmplice, e me explicou como atenuar o efeito: “Tenta respirar pouco e só pelo nariz. Enquanto isso, vai salivando e guardando a saliva na boca, ela absorve o gás.”

Depois de conversas sobre a continuidade do ato, decidiu-se por dar uma volta no quarteirão. Chegamos à rua Riachuelo, paralela à Mem de Sá. A rua é fechada e a repressão começa com revistas. Um jovem mulato tem que abrir a mochila, de onde o policial tira um par de óculos e um livro do Saramago. Na sequência, mais gás de pimenta e cacetadas a torto e a direito.

21 DE JUNHO, SÁBADO_Assisto ao jogo sofrível da Argentina contra o Irã enquanto leio um texto sobre O Homem Revoltado. Para Camus, uma ética da revolta deveria supor uma defesa incondicional da vida. Esse debate está ligado a um projeto antigo que tenho com um amigo. Formulamos um texto sobre uma tática de protesto que superasse a opressão com a adoção de métodos não violentos inspirados na desobediência civil. Nos próximos meses, pretendo me dedicar a esse projeto, nem que seja como mera plataforma de debate.

23 DE JUNHO, SEGUNDA-FEIRA_Um ato da Rede de Comunidades e Favelas está marcado para Copacabana daqui a algumas horas. Com o lema “A festa nos estádios não vale a lágrima nas favelas”, pretende criticar a violência policial nas áreas pobres da cidade e o descaso com as políticas de construção de paz em longo prazo (educação e saúde públicas de qualidade), além das remoções empreendidas para a Copa e a Olimpíada.

Não posso ir porque na mesma hora tenho análise, que comecei a fazer quando meu pai morreu, dois dias depois que saí da prisão, no ano passado. Tudo indica que ele teve um enfarte. Um mês antes havia recebido o diagnóstico de um problema no coração, talvez um aneurisma. Na semana em que fui preso, ele se desgastou muito, dormiu pouco, ocupou-se de todo o procedimento jurídico. No sábado em que morreu, acordou cedo para organizar um evento sobre o centenário de Vinicius de Moraes e foi jogar futebol com meu irmão, à tarde, sob um sol escaldante, sem ter feito a digestão direito. Não os acompanhei dessa vez: o pessoal que havia sido preso comigo seria libertado de Bangu e queria estar lá naquele momento.

Não sei dizer em que medida minha prisão foi decisiva para a morte de meu pai. Culpei-me nos primeiros dias, mas logo superei esse sentimento. Desde o ano passado, a violência policial, a criminalização das ações de manifestantes, as detenções e prisões tiveram como único objetivo disseminar o medo e dissuadir as pessoas dos protestos. Em certa medida, a ação conjunta da polícia, dos governantes e de parte da mídia foi eficiente: as ruas se esvaziaram. Mas o medo é infinitamente mais instável que o desejo de justiça e o respeito pela própria dignidade: as causas de nossa indignação persistem.

Na sessão de análise, manifesto minha reticência em publicar meu nome neste diário. Desde a ocupação da Câmara, a decisão pelo anonimato estava muito além de razões de segurança. Queríamos denunciar o individualismo de uma sociedade desinteressada em reconhecer processos sociais. Estávamos ocupando não por algum mérito próprio, mas pela característica comum de nos indignarmos e o desejo de fazer da Câmara Municipal um símbolo de participação democrática mais direta. Sinto-me traindo esse princípio e me pergunto por que me exponho. Reconheço uma dose de vaidade, o suficiente para combatê-la, mas também a vontade de contribuir para o debate e a reflexão sobre os protestos.

26 DE JUNHO, QUINTA-FEIRA_Duas reuniões acontecem hoje. Uma é a plenária da FIP, outra o encontro semanal na Casa Nuvem. A plenária está marcada para as 18 horas no pátio interno do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Minha ideia é sugerir que, no ato marcado para sábado, a gente tente chegar ao Maracanã fantasiado de torcedor e realize a marcha no próprio entorno, onde teremos visibilidade e mais chances de driblar a repressão, que pensaria duas vezes antes de sufocar o protesto no meio dos gringos. Se a polícia tentar nos retirar à força, poderemos resistir de forma não violenta, o que já será um acontecimento político.

A plenária começa com uma rodada de apresentações de quem participa pela primeira vez. É o meu caso. Sou bem recebido. Em seguida, vêm os informes. Fala-se do ato da Rede de Comunidades, que tinha sido muito bonito, integrando-se a uma marcha puxada pela FIP, com o canto “Favela e asfalto, junto e misturado”. Observo que a linguagem conserva reflexos da militância mais tradicional, que acredito afastar as pessoas com expressões como “palavra de ordem” e “companheiro”. Há todo um vocabulário a ser criado. A FIP se propõe a ser uma frente de grupos heterogêneos, em que todo mundo terá sua palavra respeitada. Sinto que, embora todos possam falar, nem sempre são ouvidos. Alguns discursos inflamados mais reforçam ideias preconcebidas do que estimulam o debate.

Não se fala sobre o ato de sábado – outras reuniões, mais reservadas, terão a função de organizá-lo. Fico contrariado: vim aqui apenas para isso. Quando chega minha vez de me pronunciar, não vejo muito sentido e cancelo minha inscrição. Prefiro conversar com um amigo sobre as ideias que tenho e ele me diz que as levará para a reunião sobre a próxima manifestação.

Depois da plenária vou para a Nuvem, para conversar sobre a importância de uma assembleia mais geral, com muitos movimentos e a proposta de ações unificadas e de impacto para o restante da Copa. Não haverá reunião: estão todos ocupados, preparando os adereços para uma nova Carnavandalirização.

Um homem de meia-idade que se tornou meu amigo nos protestos está exaltado, reclamando da falta de organização e de maturidade política. Ele se refere à República da Cinelândia, um projeto de ocupação da praça durante a Copa. A ideia era boa, mas não foi adiante por ser liderada pelo Fora do Eixo. Muitas pessoas têm um pé atrás com seus métodos de ação, mais pragmáticos e verticalizados, talvez com fins eleitorais e associados a um projeto de poder do PT. Sua prática de apropriação simbólica dos eventos é criticada.

Tendo a julgar estéreis essas fragmentações e condeno o boicote a qualquer iniciativa que sacuda minimamente a sociedade, independentemente das motivações. Os efeitos de nossas ações costumam extrapolar seus objetivos iniciais.

28 DE JUNHO, SÁBADO_Vou assistir Brasil x Chile com a família, na casa de um primo na Tijuca. Dois amigos uruguaios preparam o churrasco e cerca de trinta pessoas já estão instaladas em torno da tevê. Gosto do estilo de jogo do Chile, e o Brasil, além de toda a questão política, está com um time retranqueiro e medíocre.

Na decisão por pênaltis, porém, minhas emoções se desencontram. Não é que eu tenha voltado a amar a Seleção, mas percebo mais claramente um dos lados do futebol, que é fortalecer os laços de afeto. A emoção de minha avó, até então sonolenta e quase indiferente, me comove. Ela chora a cada pênalti convertido pelo Brasil e perdido pelo Chile. Ao final, me abraça dizendo que meu pai está feliz neste momento. Provavelmente ela torce pela felicidade de seu filho, que sempre amou essa “danação” de futebol.

Vou a pé à praça Saens Peña, de onde uma marcha sairá às 18 horas. O jogo seguinte, entre Uruguai e Colômbia, decidirá o adversário do Brasil nas quartas de final e será no Maracanã. Há poucas pessoas, o que já não me surpreende. Saímos fechando a rua Conde de Bonfim e caminhamos por ruas transversais para tentar contornar o bloqueio policial, mas não vamos longe. A repressão começa logo. As ruas estreitas em que nos enfiamos favorecem o trabalho da polícia e uma dezena de pessoas é detida. Do nada, levo uma pancada de cassetete que pega de raspão, sem machucar. Algemam uma garota e a colocam no porta-malas de um camburão. Depois de mais detenções – dezenove no total –, o ato retorna à Saens Peña e se desfaz. Lançam uma bomba de efeito moral, sem propósito. Não sei o custo de uma bomba de efeito moral para o governo do Rio, mas uma de gás lacrimogêneo sai ao governo de São Paulo por 800 reais. A Condor, empresa que as produz, agradece.

No fim da noite, minha mãe liga. Está preocupada com minha avó materna, que foi hospitalizada. Ela viaja amanhã para Natal.

29 DE JUNHO, DOMINGO_ À tarde, vou me despedir da minha mãe, bastante abalada e ansiosa. Chamo um táxi para levá-la ao aeroporto. Ao voltar, sou parado numa blitz da Lei Seca. Não bebi, já tinha arrumado a placa do carro, mas ainda não havia recuperado o documento. O carro é rebocado.

Em casa, o Rio na Rua me informa de uma marcha silenciosa que ocorreu mais cedo em Copacabana. A ideia era protestar em silêncio contra a violência nas favelas, andando pela orla, com cartazes e camisetas manchadas de tinta vermelha. Os turistas demonstraram curiosidade e apoiaram, assim como os jornalistas estrangeiros. Vislumbro uma coisa diferente, não violenta mas incisiva.

30 DE JUNHO, SEGUNDA-FEIRA_Descubro que preciso levar os documentos ao Detran, no Centro; apanhar a liberação em Campo Grande, na Zona Oeste; e só então posso resgatar o carro, em Caxias, na Baixada Fluminense. O documento está no nome do meu pai e não quero obrigar minha irmã, que é a inventariante, a fazer o percurso Copacabana–Campo Grande–Caxias. Penso em pedir a ela uma procuração. Cada diária no depósito custa 70 reais.

2 DE JULHO, QUARTA-FEIRA_Passo no cartório: 350 reais é o valor da procuração. Reclamo e a atendente concorda que é muito caro, diz que em Brasília e em São Paulo o mesmo documento sai por dez vezes menos. Minha irmã se dispõe a ir a Campo Grande comigo, com o motorista da minha avó paterna. Chegamos por volta de 16h30 e somos informados de que antes precisamos pagar em espécie as diárias e o custo do reboque.

Fico na fila da senha e minha irmã vai fazer o pagamento. Só há um caixa do Bradesco, e duas mulheres que têm conta no banco cobram 10% do valor do documento para pagá-lo, em troca de dinheiro vivo. De posse do documento pago e da senha, esperamos até as 19 horas para sermos atendidos. Minha irmã quita as diárias até amanhã, quando resgataremos o carro em Caxias. Mas o sistema em Campo Grande não poderia registrar o pagamento da diária do dia seguinte. Não obtivemos o documento de liberação. Reclamamos e o máximo que conseguimos foi a prioridade para o atendimento no dia seguinte.

3 DE JULHO, QUINTA-FEIRA_Acordo às 7 horas para buscar o carro em Caxias a tempo de liberar minha irmã para o trabalho.

Assim que levanto, recebo um telefonema do meu tio-avô. Com tristeza, ele diz que Yeda, minha avó materna, partiu de madrugada. Ligo para minha irmã, que se oferece para ir resgatar o carro sozinha. Falo com a minha mãe, que me parece mais tranquila do que eu esperava. Minha avó estava acamada havia alguns anos, depois de cinco AVCs. Foi um processo doloroso, que deu a todos tempo de se preparar. Tento conseguir uma passagem para Natal, em vão. Compro um bilhete para a missa de sétimo dia, na próxima semana. Adormeço e sonho com meu pai.

Passo o dia assimilando a notícia. Cheguei a viver um ano com minha avó quando pequeno, e ela me incutiu muitos de seus valores. Sua morte é um baque para meu ânimo em relação aos protestos. Lamento a intolerância entre os grupos que se propõem a ser transformadores, a falta de coragem daqueles com mais maturi-dade política e a pouca criatividade dos que têm coragem. As pessoas costumam esbarrar no medo da prisão e da agressão física. Aprendi com minha avó, certamente influenciada pelo cristianismo, o valor do sacrifício. Ela sempre pôs o serviço aos outros como sua vontade primeira.

4 DE JULHO, SEXTA-FEIRA_Ainda desanimado, acordo cedo para o protesto que haverá em Copacabana, organizado pelo Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas. Vou com meu irmão. Encontramos muitas bandeiras de organizações de esquerda, bem como o pessoal da Nuvem. O ato vai até o Fifa Fan Fest e se dispersa.

À tarde, vejo o primeiro tempo de Alemanha x França em casa e, com minha camisa “Fuck Fifa”, parto para a manifestação que haverá na Tijuca – o jogo é no Maracanã. Chego atrasado, e nada de encontrar o protesto. Caminho até o Maracanã, em meio a torcedores brasileiros que olham com desconfiança para minha camiseta. Perto do estádio, a reação dos gringos é oposta: muitos riem e acenam em apoio. Um francês tira uma foto comigo.

Dou a volta no Maracanã e encontro um amigo desgarrado. Ele está com a mesma blusa verde-amarela, mas com inscrições em vermelho nas costas: “Maré, -13”, numa alusão à chacina do ano passado. Finalmente descobrimos que os manifestantes haviam sido cercados pela polícia, encurralados num bar e impedidos de se aproximar do estádio.

7 DE JULHO, SEGUNDA-FEIRA_Puxo uma reunião para tentar organizar um grupo que atue na última semana da Copa com intervenções estéticas. Somos cerca de trinta pessoas, um número razoável. Apresento a proposta e abro para sugestões. Uma mulher que conheço das ruas não parece muito animada. Quando se levanta para ir embora, vou conversar com ela, que me diz que tinha botado fé na reunião, mas que não faria nada com o pessoal do Fora do Eixo/Mídia Ninja.

Em dado momento, um amigo anarquista pergunta quem ali era de partido, porque ele não participaria de nada com fins eleitorais. Propõe uma “rodada de confissões” e se diz anarquista e antipartidário. Afirmo minha simpatia por um determinado partido de esquerda, mas que vem me decepcionando desde os protestos de junho de 2013. E argumento que essa questão não se impõe agora: vamos desafiar o próprio status quo da esquerda e intervir de uma maneira mais incisiva do que o pessoal partidário vinha fazendo com suas passeatas formais nas manhãs.

Ele insiste, fica evidente que sua pergunta se dirige a dois ativistas do Fora do Eixo. Um deles diz que não é o momento de criar mais divisões, que a disputa pela hegemonia ocorrerá depois que a esquerda conquistar algo que a una. O amigo anarquista então me pergunta se vou me candidatar. Surpreendo-me, já que nem filiado a partido sou. Acredito mais na democracia participativa, nas ruas, e a representação jamais poderá substituí-la sem incorrer na ameaça de usurpação, que é o que estamos vivendo. No final, só conseguimos levantar boas ideias, mas que precisa

8 DE JULHO, TERÇA-FEIRA_O voo é às cinco da manhã, com uma escala de três horas em Brasília. Ao desembarcar, dou um abraço forte em minha mãe, sinto o cheiro da minha avó na casa e os olhos ficam marejados de saudade. A missa será amanhã.

Durmo depois do almoço e acordo na hora de Brasil x Alemanha. Estava pressentindo que a Seleção dificilmente ganharia. No terceiro gol da Alemanha, posto no Facebook que tínhamos um Mineiraço e peço mais gols. Um amigo critica meu post, diz que não posso confundir política com futebol. Como comentaria um primo, é complicado dizer que não há relação entre política e futebol no país do futebol e da Copa.

Se essa Copa deixou algum legado, foi o de superarmos a afirmação da nacionalidade estritamente pelo futebol. Não adianta torcer pela Seleção e depois dizer que o país não tem jeito, que o Brasil só não dá certo por causa do brasileiro, e desqualificar tudo o que nos caracteriza.

10 DE JULHO, QUINTA-FEIRA_No aeroporto, enquanto espero o embarque, procuro saber como está a organização das intervenções. A amiga mais animada e dedicada à proposta pegou pneumonia e pouco havia sido feito. Entendi o esgotamento. Este mês, embora mais intenso, sintetiza bem todo o último ano. Precisamos descansar do embrutecimento da mobilização política. Mas ainda há uma Copa em curso.

No avião, leio capítulos de Redes de Indignação e Esperança, de Manuel Castells. O exemplo da Espanha me consola. Depois de um tempo na rua, diante de um impasse, os manifestantes optaram pela retirada, para que a experiência amadurecesse, não só neles como na sociedade. Não adianta se antecipar aos processos sociais: isso só nos faz recair no isolamento, no gueto vanguardista.

12 DE JULHO, SÁBADO_Mais uma vez, acordo com um telefonema. Minha irmã me alerta que mais de dez pessoas haviam sido presas. Como ocupei a Câmara e fui preso dois meses depois, eu poderia estar na lista. Ela diz que com isso pretendem esvaziar o ato da final da Copa. Acho estranho, pois não há mobilizações tão intensas e ameaçadoras – pelo contrário.

13 DE JULHO, DOMINGO_Acordo tomado pela tristeza com as prisões aparentemente arbitrárias. Avalio com precipitação que as pessoas estão se posicionando pouco sobre elas. Deixo-me levar pela ansiedade.

Levanto para o ato na praça Saens Peña, marcado para as 13 horas. Um protesto do Comitê Popular Rio Copa estava previsto para as 10 horas na praça Afonso Pena, também na Tijuca. Há uma vaga intenção de unificar os dois. A final no Maracanã está marcada para as 16 horas, pretendo chegar uma hora antes. Acompanhando o desenrolar do ato pelo WhatsApp, vejo que a unificação não funcionou e muita gente de partido foi embora depois do primeiro protesto.

A repressão também começou cedo. A polícia cercou o perímetro da Saens Peña e não deixou ninguém sair. No metrô da Afonso Pena, encontro um amigo, assustado e com um olho vermelho. Explica que a repressão começou quando os manifestantes tentaram sair da praça. Ele se refugiou no metrô e os policiais o seguiram até lá. Tinham soltado uma bomba de gás azul que ele nunca havia visto e que não o deixava respirar. Os alto-falantes do metrô, que antes avisavam que a estação Saens Peña estava fechada, agora informam que ela tinha sido aberta apenas para desembarque.

Na Saens Peña, os agentes de segurança do metrô só deixam as pessoas saírem pelas portas entreabertas. Moradores dizem que nada têm a ver com o protesto e querem ir para casa. Os policiais são inflexíveis. O sítio, certamente, vai até depois do fim da partida. As forças de segurança não querem arriscar qualquer coisa que comprometa a festa dos estádios. E todo o aparato estava mobilizado: Polícia Militar, Batalhão de Policiamento em Grandes Eventos, Choque, cavalaria, Força Nacional, Guarda Municipal. Só não vi Polícia Federal e Exército. Se estivéssemos preparados e disciplinados para a não violência, poderíamos caminhar uniformemente para cima do bloqueio. Que nos prendessem e agredissem todos: isso só denunciaria ainda mais a arbitrariedade daquele sítio. Mas é evidentemente difícil se expor a esses riscos.

Vejo duas ou três confusões: pessoas tentam forçar a passagem e a polícia cai em cima delas. Quando o Choque joga uma bomba de gás vermelho, alguns jornalistas pedem aos policiais que os deixem passar para fotografá-la. Eles abrem o cerco e vou atrás. Acompanho a repressão a distância. Uma jovem entra em pânico e é carregada por outros manifestantes. De olhos fechados, ela não consegue respirar. Suplica que alguém pegue sua bombinha na mochila: é asmática. Chamam uma ambulância da polícia que estava ali perto.

Percebo que o ato não vai muito além disso. A situação vai se perpetuar até depois do Alemanha x Argentina, já iniciado. Quando acaba o primeiro tempo, resolvo encontrar amigos no bairro. Chego para a prorrogação, exausto e faminto. Pedimos uma pizza. Os policiais liberam o perímetro da praça, sob pressão de alguns advogados e políticos. A opinião pública critica a polícia, mas o objetivo já havia sido cumprido. Um jornalista estrangeiro foi roubado e agredido, um jornalista brasileiro teve o braço quebrado, dezenove pessoas foram detidas e a Alemanha é campeã.

[1]Os Comitês Populares da Copa foram criados em várias capitais, a partir de 2010, por pesquisadores, ONGs, lideranças comunitárias e partidos de esquerda para monitorar os impactos sociais do evento; o do Rio inclui a Olimpíada de 2016.

[2]A FIP foi criada durante os protestos de 2013 por ativistas, entre eles anarquistas, que rejeitam a participação de partidos políticos.


[3]A ocupação da Câmara Municipal do Rio começou em 9 de agosto de 2013, com cerca de sessenta manifestantes, e terminou doze dias depois, quando restavam seis; dezenas de ativistas continuaram acampados do lado de fora do edifício, na Cinelândia, até outubro, quando foram detidos. O motivo do protesto foi a composição da CPI dos Ônibus, controlada por vereadores que se opuseram à investigação de possível formação de cartel no transporte público na cidade.

Contato

manuelatrindade2@gmail.com